É evidente que neste período isolados sentimos falta de muitas atividades, lugares, passeios… No entanto, parece que o que mais abalou e desestabilizou o funcionamento psíquico de muitas pessoas foi o afastamento social e a carência de afeto. A solidão e a carência afetiva, são recorrentes queixas no consultório atualmente e ainda que as ferramentas digitais atenuem tais efeitos, parecem não dar conta de supri-los.
A psicanálise desenvolveu-se como método de investigação dos afetos e suas formas conscientes e inconscientes de expressão e representação tornaram-se primordiais, tanto para a teoria psicanalítica quanto para a clínica. As relações de afeto se transformam no decorrer da história e uma confluência de fatores contribuem para tanto.
Pensando no nosso cenário atual nos deparamos com um individualismo exacerbado, processos de exclusão sociais, bem como de desenraizamento pessoal e coletivo, uma instabilidade e inconstância por parte das lideranças e a atenuante radicalização e polarização no mundo social; inundando assim os sujeitos contemporâneos de afetos intraduzíveis e sendo fontes de desmesurado sofrimento psíquico. A pandemia parece ter evidenciado e potencializado muitos destes fenômenos tantas vezes latentes, o fato é que cristaliza-se então a sensação de desamparo; as diferentes manifestações de dor psíquica revelam o quanto esse sofrimento é construído na conjunção de dimensões pessoais, interpessoais e coletivas. Os sintomas manifestados comunicam o desconforto e o mal-estar pelos quais estamos acometidos, sendo assim material importante de análise. A relação entre angústia, desamparo e valor do objeto é construída e esclarece a afirmativa de Freud, segundo a qual toda reação de angústia assinala uma ameaça de separação do objeto, o que pode lançar o sujeito em um lugar de desamparo.
A constituição do individualismo do homem atual nos remete a um sujeito sempre em busca de liberdade e autonomia imediatas, guiado pelas exigências da funcionalidade, da performance e da eficiência; o excesso de estimulação ao qual está sempre submetido e a falta de suportes simbólicos (presentes mais para seus antepassados), o lançam a um lugar de extremo desamparo, permeado por incertezas e imprevisibilidade.
“A incerteza é o habitat natural da vida humana – ainda que a esperança de escapar da incerteza seja o motor das atividades humanas. Escapar da incerteza é um ingrediente fundamental, mesmo que apenas tacitamente presumido, de todas e quaisquer imagens compósitas da felicidade. É por isso que a felicidade “genuína, adequada e total” sempre parece residir em algum lugar à frente: tal como o horizonte, que recua quando se tente chegar mais perto dele.”
BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida, p. 31-32.
O sujeito é incitado a assumir total responsabilidade pela sua vida, privado muitas vezes de suportes tradicionais religiosos, institucionais ou mesmo familiares e confrontado com a exigência do rendimento e do sucesso: o indivíduo entra em colapso. Ele se vê carente de vínculos pessoais e sociais significativos, atemorizado pela rapidez e violência das mudanças contemporâneas, remetido a uma explosão de afetos, emoções e sentimentos; os quais caracterizam as formas de expressão de afetividade em nosso tempo. Pânico e depressão são duas faces do desamparo, que representam bem a situação do sujeito no mundo de hoje e tais diagnósticos clínicos estão num crescimento atenuante.
Parece que o cenário atual de pandemia traz à luz e/ou potencializa alguns fenômenos que já existiam anteriormente (latentes ou não), deixando em evidência muitas lacunas sociais e funcionamentos patológicos. É de suma importância que haja, principalmente na área da psicologia, mais reflexão e estudos acerca desta temática, para que possamos desenvolver novas ferramentas de cuidado e, assim, alcançar papel propositivo na área da saúde mental.
Gabriela de Faria Rondão | Psicóloga Clínica
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